Enquanto se espalha o discurso raso de que o artigo 19 do Marco Civil da Internet serve para blindar as Big Techs, um voto lúcido e corajoso no Supremo Tribunal Federal nos lembra a verdade incômoda: não é das plataformas que se trata – é da Constituição. O voto do ministro André Mendonça, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.037.396, não é uma defesa da Google, da Meta ou da X. É uma defesa da liberdade de expressão, do devido processo legal e da segurança jurídica no ambiente digital. Em tempos em que o Judiciário tem assumido protagonismo regulatório, muitas vezes por omissão legislativa, é fundamental distinguir o que é ativismo legítimo do que é desvio de finalidade institucional.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet é claro: só há responsabilização das plataformas quando descumprem ordem judicial específica para remoção de conteúdo. E isso não é um privilégio. É um freio. Um limite. Um contrapeso que impede a censura privada automatizada, feita por algoritmos e departamentos de conformidade sob pressão. Ele não protege empresas – protege cidadãos de serem silenciados sem defesa.
O voto de André Mendonça é um lembrete: liberdade de expressão não é direito de quem pensa certo. É de quem pensa diferente. E esse direito só faz sentido se houver um árbitro imparcial – o Judiciário – para protegê-lo, não uma empresa que decide o que pode ou não circular
Ao analisar esse dispositivo, o ministro André Mendonça foi direto ao ponto: a revogação do artigo 19 inverteria a lógica do Estado de Direito. Em vez de o Judiciário decidir se um conteúdo é legal ou não, transferiríamos esse poder – e esse dever – a atores privados. É a censura terceirizada, disfarçada de zelo jurídico.
O voto de André Mendonça traz algo raro no debate jurídico contemporâneo: densidade técnica com coragem institucional. Ao comparar o Marco Civil com a Seção 230 do Communications Decency Act americano e com a Diretiva Europeia de Comércio Eletrônico, o ministro mostra que o Brasil, ao aprovar essa lei em 2014, adotou o modelo internacional mais equilibrado para garantir liberdade de expressão com responsabilização a posteriori, não a priori.
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Há quem tente reduzir essa discussão a um embate entre “proteger ou punir plataformas”. Esse é um falso dilema. O que está em jogo é o papel do Judiciário e o futuro da democracia digital. Derrubar o artigo 19 significa empurrar as plataformas a apagarem conteúdos por medo de sanções, não por convicção jurídica. É o “tira antes, discute depois”. E, nesse arranjo, quem perde é sempre o usuário.
Na prática, isso levará a um novo tipo de judicialização: a do usuário que tenta reaver seu conteúdo sumariamente deletado, muitas vezes por erro, por automatismo ou por viés ideológico. Hoje, o Judiciário analisa pedidos de remoção. Amanhã, poderá se ver às voltas com uma enxurrada de pedidos de restituição de voz. Ironia: em nome de “menos judicialização”, teremos mais.
O voto de André Mendonça é um lembrete: liberdade de expressão não é direito de quem pensa certo. É de quem pensa diferente. E esse direito só faz sentido se houver um árbitro imparcial – o Judiciário – para protegê-lo, não uma empresa que decide o que pode ou não circular conforme seus próprios interesses ou temores regulatórios. Não se trata de proteger empresas. Trata-se de proteger pessoas. E, principalmente, proteger a Constituição da tentação autoritária de controlar o discurso público por vias tortas.
Alexander Coelho, advogado, sócio do escritório Godke Advogados, é especialista em Direito Digital, Inteligência Artificial (IA) e Cibersegurança, membro da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados e Inteligência Artificial (IA) da OAB/São Paulo e pós-graduado em Digital Services pela Faculdade de Direito de Lisboa (Portugal).